(Publicado no jornal Meia Hora, 4/12/2008)
A pretexto do “caso BPN” multiplicaram-se na última semana as análises fazendo a “revisão histórica” do chamado “cavaquismo”. O “cavaquismo”, questão que nós temos connosco mesmos.
Na verdade, trata-se de um dos períodos pior resolvidos em termos históricos por alguma esquerda e alguma direita (sempre mais próximas entre si do que aparentemente se julgaria). As ditas análises disfarçam mal uma certa satisfação com a queda em desgraça do cavaquismo. O corrente ar de “grande senhor” do Presidente Cavaco Silva quase fez esquecer o tempo em que, para essa esquerda e para essa direita, Cavaco era uma espécie de Sarah Palin à portuguesa: o “homem sem biografia” (nas inequecíveis palavras de Mário Soares), o filho do gasolineiro de Boliqueime, o suposto representante do povo das camionetas de caixa aberta a transbordarem de filhos e hortaliças. Os dez anos de cavaquismo foram uma humilhação histórica para essa esquerda e para essa direita, ainda para mais acrescidos da sombra que a sua estabilidade e prosperidade continuaram a projectar até hoje sobre o país.
Mas nessas análises tenho sentido falta de uma nota: é que o cavaquismo foi o mais importante momento de credibilização (talvez mesmo de salvação) da nossa democracia. Já ninguém se lembra como ela era antes da primeira maioria absoluta de Cavaco. Já nos esquecemos como, entre 1976 e 1987, o sistema político vivia em absoluto descrédito: governos que duravam entre dois anos e alguns meses, conflitos permanentes entre os diversos órgãos de soberania ou coligações espúrias e frágeis. Já ninguém se recorda da sensação de crise perpétua, senão mesmo de inviabilidade, do regime. As maiorias absolutas de Cavaco acabaram com isso. Dado que nessa altura se viveu também o melhor período de crescimento económico desde os últimos anos do Estado Novo, o cavaquismo deu-nos a ideia de que afinal poderíamos ser como qualquer outro país europeu: calmo, estável e próspero. Não por acaso, quem recentemente votou em Sócrates e no próprio Cavaco quis fazer-nos regressar a essa “idade de ouro”.
Aos satisfeitos com a derrota póstuma do cavaquismo vale a pena lembrar o seguinte: a revisão histórica do cavaquismo é também a revisão histórica da nossa democracia. O que nos coloca perante a pergunta: será que a ideia de um Portugal democrático, próspero e estável nunca passou de ilusão? Desde anteontem que regressámos ao conflito entre órgãos de sobrania. E não se vai ficar por aqui.