Archive for Dezembro, 2008

O cavaquismo

Dezembro 10, 2008

(Publicado no jornal Meia Hora, 4/12/2008)

A pretexto do “caso BPN” multiplicaram-se na última semana as análises fazendo a “revisão histórica” do chamado “cavaquismo”. O “cavaquismo”, questão que nós temos connosco mesmos.

Na verdade, trata-se de um dos períodos pior resolvidos em termos históricos por alguma esquerda e alguma direita (sempre mais próximas entre si do que aparentemente se julgaria). As ditas análises disfarçam mal uma certa satisfação com a queda em desgraça do cavaquismo. O corrente ar de “grande senhor” do Presidente Cavaco Silva quase fez esquecer o tempo em que, para essa esquerda e para essa direita, Cavaco era uma espécie de Sarah Palin à portuguesa: o “homem sem biografia” (nas inequecíveis palavras de Mário Soares), o filho do gasolineiro de Boliqueime, o suposto representante do povo das camionetas de caixa aberta a transbordarem de filhos e hortaliças. Os dez anos de cavaquismo foram uma humilhação histórica para essa esquerda e para essa direita, ainda para mais acrescidos da sombra que a sua estabilidade e prosperidade continuaram a projectar até hoje sobre o país.

Mas nessas análises tenho sentido falta de uma nota: é que o cavaquismo foi o mais importante momento de credibilização (talvez mesmo de salvação) da nossa democracia. Já ninguém se lembra como ela era antes da primeira maioria absoluta de Cavaco. Já nos esquecemos como, entre 1976 e 1987, o sistema político vivia em absoluto descrédito: governos que duravam entre dois anos e alguns meses, conflitos permanentes entre os diversos órgãos de soberania ou coligações espúrias e frágeis. Já ninguém se recorda da sensação de crise perpétua, senão mesmo de inviabilidade, do regime. As maiorias absolutas de Cavaco acabaram com isso. Dado que nessa altura se viveu também o melhor período de crescimento económico desde os últimos anos do Estado Novo, o cavaquismo deu-nos a ideia de que afinal poderíamos ser como qualquer outro país europeu: calmo, estável e próspero. Não por acaso, quem recentemente votou em Sócrates e no próprio Cavaco quis fazer-nos regressar a essa “idade de ouro”.

Aos satisfeitos com a derrota póstuma do cavaquismo vale a pena lembrar o seguinte: a revisão histórica do cavaquismo é também a revisão histórica da nossa democracia. O que nos coloca perante a pergunta: será que a ideia de um Portugal democrático, próspero e estável nunca passou de ilusão? Desde anteontem que regressámos ao conflito entre órgãos de sobrania. E não se vai ficar por aqui.

O estado da união monetária europeia

Dezembro 3, 2008

(publicado no jornal Meia Hora, 27/12/2008)

Por causa da crise, há rumores de países que, embora tradicionalmente cépticos sobre o euro, querem aderir à união monetária. Mas cabe perguntar o que poderia o euro fazer por eles. É certo que poderia salvar alguns da bancarrota imediata (o que não é pouco). Mas se é para se transformar num refúgio de Estados falidos, perde a sua força e automaticamente também essa função. Vale a pena olhar para o caso de alguns dos seus participantes, especialmente o mais próximo de casa, o do nosso país.

Neste momento, tudo apontaria para a vantagem contrária: Portugal abandonar o euro. O valor cambial do euro, bem como a inexistência da vantagem cambial face aos parceiros da zona, continuam a ser punitivos para as nossas exportações, apesar da recente desvalorização. Tudo indicaria que teríamos a ganhar em desvalorizar uma hipotética moeda nacional, que não existe. Tudo indicaria também a vantagem de uma maior liberdade orçamental, no sentido de “estimular” a economia. Mas não a temos: para além do Pacto de Estabilidade, estímulos unilaterais agravariam o endividamento externo, já de si em níveis historicamente inéditos.

No entanto, o abandono não poderia ser feito sem custos insuportáveis. Uma presumível saída do euro e subsequente restauração do escudo levaria a tal queda do valor deste e posterior fuga de capitais que tornam impossível considerar a hipótese. Uma eventual compensação seria a elevação maciça da taxa de juro. Mas daqui resultaria um brutal efeito negativo sobre o crescimento, a menos que fosse “equilibrado” com uma inflação igualmente desastrosa.

A união monetária europeia está numa espécie de engarrafamento sem saída: há tensões puxando para o seu fim, mas os custos seriam tão grandes que o tornam quase impraticável. Existiriam duas possíveis soluções positivas: uma, o abandono coordenado de todos os países, que evitasse fugas das novas moedas menos credíveis. Trata-se de algo estritamente académico: não há finais de uniões monetárias coordenados. A outra, a criação de uma dívida pública e de um ministério das Finanças europeus. Também não é fácil: tratar-se-ia, na realidade, da união política que muitos querem mas outros tantos temem.

O euro vem funcionando como um torniquete kafkiano: se para muitos países era vantajoso não o ter como moeda, abandoná-lo teria um preço tão elevado que a possibilidade nem é considerada. Mas as tensões existem e alguma solução terá de surgir. Nenhuma muito excitante.